Abuso do Poder Religioso - Uma nova figura no direito eleitoral

Por Mirla Regina da Silva Cutrim*

Quando o assunto é abuso do poder no direito eleitoral, tema tão caro, cujo debate é imprescindível à democracia, à cidadania e à liberdade do voto, temos um cenário novo para discutir: o abuso do poder religioso e o assédio moral aos fiéis das diversas denominações, que tem agitado a reflexão da sociedade sobre a necessidade de revisão da legislação vigente.

Um dos trechos mais famosos da obra “O Espírito das Leis” de Charles Montesquieu destaca que “é uma experiência eterna que todo homem investido no poder é tentado a abusar dele”. E ele ainda ironiza: “Quem diria! A própria virtude tem necessidade de limites” sendo necessário, para evitar o abuso, que “o poder freie o poder”. E é no período eleitoral que o poder mostra sua pior face. Raramente usado como virtude, transforma-se em paixão violenta, ou melhor, em guerra de paixões onde vale tudo, do assédio moral à compra de votos, e assim se eterniza na nossa história.

Segundo os artigos 19 e 22 da Lei Complementar 64/90, o abuso de poder é capaz de tornar o candidato inelegível, impedindo sua posse no cargo para o qual foi eleito. Relevante alteração no sistema das inelegibilidades, especialmente no artigo 22 acima destacado advém da Lei Complementar 135/2010, no sentido de que “para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”.

Já são conhecidas algumas formas de abuso de poder, quais sejam, o econômico, o político, o ideológico, o da informação e o da autoridade. Mas o poder religioso é novidade das mais recentes eleições. Não só porque passa por cima das leis humanas e das leis de Deus, mas devidos aos meios e artifícios utilizados pelas lideranças políticas, tudo com o indigesto aval das lideranças religiosas. 

As condutas, muitas delas registradas nas denúncias endereçadas à Justiça Eleitoral, vão desde o registro de números de candidaturas de fácil vinculação com números bíblicos, arregimentação de discípulos de células ou de membros como cabos eleitorais, pedidos de votos ou apertos de mão na porta das igrejas até os apelos mais emocionais possíveis no altar, durante os cultos de celebração, com uma suposta base na Palavra de Deus, totalmente desvirtuada. 

Menciona-se ainda o uso indireto dos setores de “ação social” das igrejas para distribuição de cestas básicas e outros itens, ofertas de dinheiro ou material de construção para reforma e ampliação de congregações, em troca dos votos dos fiéis, além de negociação financeira de parcerias entre candidatos para pedidos de votos.

É certo que a religião tem o seu poder positivo, de transformar pessoas que buscam cura na alma, estimulando comportamentos que colaboram com a paz na sociedade. É igualmente imprescindível o seu papel de conscientização social, orientando os fiéis na escolha de candidatos que possam contribuir com o aperfeiçoamento da sociedade. 

Como em qualquer outro local, o ambiente religioso é também construído socialmente e o cristão, onde quer que esteja deve atuar em conformidade com os preceitos bíblicos. Isso vale para o lar, para os amigos, para a profissão e para a política. 

Agora, inaceitável que, como as demais formas espúrias de poder e dominação, o poder religioso venha a atrair aqueles que queiram transformá-lo em um trampolim político, merecendo tal conduta não só a repressão legal da justiça eleitoral, como a repressão interna das autoridades religiosas.

Os últimos dias têm sido marcados pela revelação, não a revelação divina que vem por meio dos profetas, mas pela queda das máscaras daqueles que dizem seguir a Deus e na verdade apenas envergonham o Evangelho de Cristo. Mas isso também procede de Deus, ao providenciar que mais cedo ou mais tarde surjam circunstâncias que venham a expor aqueles que usam indevidamente seu Santo Nome em busca de interesses meramente pessoais.

Se é verdade que por meio das eleições os cristãos almejam uma mobilização que faça revigorar valores perdidos na sociedade, cuja ausência tem culminado com o aumento da violência e desagregação, também se pode afirmar que esses mesmos cristãos devem ser exemplo a partir de seus atos políticos, seguindo o caminho mais correto possível.

Nessas eleições, encontram-se dois casos paradigmáticos sobre a ética cristã. O primeiro caso ocorre quando um candidato, sendo evangélico, abre mão de utilizar essa situação para a disputa, deixando a liberdade de escolha aos fiéis que conhecem seus planos e programas de trabalho. O segundo caso ocorre quando outro candidato faz justamente o contrário, usando o argumento de ser evangélico para arregimentar os eleitores por meio de práticas totalmente desaconselhadas pela Bíblia.

Na segunda hipótese, fica mais do que configurado o abuso do poder religioso, o que, ante o silêncio da lei eleitoral nesta parte, autoriza a aplicação das mesmas normas de repressão para as demais formas de abuso já previstas.

A eleição que interessa a Deus é de cunho espiritual e envolve a escolha de seus eleitos para seguir um evangelho puro e simples, que promova edificação de caráter, e não a degradação moral e a afronta à dignidade humana.

O historiador Geoffrey Blainey concluiu o livro “Uma breve história do mundo” afirmando que todos os triunfos da ciência e da tecnologia foram superficiais: foi mais fácil dominar as doenças do que o comportamento humano. Mas esse também não fica sem remédio. Certamente, ainda há um longo caminho para que se possa alcançar um equilibro entre o rigor e a flexibilidade das leis eleitorais, associando a liberdade política com a ordem constitucional vigente. 

Mas por enquanto, o que se precisa mesmo, é uma ação dura e imediata contra a corrupção, o abuso e o assédio moral, em todas as suas formas.

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*Juíza de Direito do Terceiro Juizado Especial Cível de Rio Branco/AC

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