O espetáculo tem que continuar!

Por Hermes C. Fernandes

"Mas graças a Deus, que em Cristo sempre nos conduz em triunfo, e por meio de nós manifesta em todo lugar o perfume do seu conhecimento." 2 Coríntios 2:14

Eis um dos versos bíblicos mais mal compreendidos pelos cristãos contemporâneos. Mas o que esperar de uma geração de crentes triunfalista e individualista, que pinça versos das Escrituras a seu bel-prazer, para justificar uma postura hedonista e egoísta? O que esperar de uma geração que sai às ruas numa marcha aparentemente dedicada a Jesus, mas que no fundo pretende ser uma demonstração de cacife político?

De acordo com essa visão distorcida, Paulo está dizendo que Cristo nos conduziria pelo mundo vitoriosamente, significando que os cristãos desfilariam pelo mundo em seus carros luxuosos, seus relógios Rolex, seus ternos Armani, suas bolsas Louis Vuitton, ostentando uma vida nababesca, digna de ser invejada pelos “infiéis”. Entretanto, o foco de Paulo não é a nossa vitória como indivíduos, mas a vitória de Cristo.

Algumas traduções dizem que Ele "sempre nos faz triunfar". Porém, o texto grego diz que Ele nos conduz em triunfo. Pode até parecer que estamos trocando seis por meia dúzia, mas "fazer triunfar" e "conduzir em triunfo" têm significados bem distintos, e praticamente opostos.

De fato, a Bíblia nos garante que "somos mais que vencedores"(Rm.8:37), e que "a vitória que vence o mundo é a nossa fé" (1 Jo.5:4). Porém, nossa vitória sobre mundo nada tem a ver com sucesso profissional, embora possa, eventualmente, incluí-lo. Somos vitoriosos no sentido de que não nos rendemos ao sistema vigente. Nossos valores são outros, bem como nossas motivações e anseios. A sociedade de consumo não conseguiu nos domesticar. O texto não fala de vencer no mundo, mas vencer o mundo. Portanto, o mundo em questão não o cenário da nossa vitória, mas o inimigo a quem devemos vencer.    

O que é que Paulo intentava dizer, afinal? De que maneira somos “conduzidos em triunfo”?

Primeiro, precisamos nos familiarizar com a palavra "triunfo". Paulo se referia aos desfiles triunfais que promovidos em Roma para recepcionar os generais romanos e suas tropas, quando chegavam de alguma campanha militar bem-sucedida.

Geralmente, o general ia à frente, em seu carro de guerra, exibindo louros em sua cabeça, seguido pelos soldados com bandeiras e estandartes, e pelos prisioneiros de guerra, acorrentados pelos pés, mãos e pescoços.

Era, de fato, uma demonstração do poderio militar romano, que causava, ao mesmo tempo, admiração e terror por parte dos que a assistiam.

Que posição, Paulo imaginava ocupar na parada triunfal de Cristo? Será que ele se imaginava o general? Ou um dos soldados? Ou será que ele se via como um prisioneiro, exibido como troféu ao mundo?

Basta relembrarmos de sua conversão, quando ouviu dos lábios de Cristo: "Saulo, Saulo, por que me persegues? Dura coisa é recalcitrares contra os aguilhões" (At.26:14). Ora, os inimigos conquistados eram exibidos pelas ruas de Roma, acorrentados com aguilhões em seus pescoços. Qualquer movimento poderia ser fatal, pois esses aguilhões penetrariam no pescoço do prisioneiro, provocando um sangramento que o levaria à morte em poucos segundos.

Não era em vão que Paulo usualmente se apresentava como "prisioneiro de Cristo" (Ef.3:1; 4:1; Fm.1; 2 Tm.1:8), pois se via como um inimigo conquistado. Era exatamente esta a imagem que tinha em mente ao declarar que estava sendo conduzido por Cristo em Seu desfile triunfal pelo mundo. Paulo era, por assim dizer, um exemplo de que Cristo é capaz de fazer a um inimigo Seu. Ele testifica: “A mim, que dantes fui blasfemo, e perseguir, e injurioso; mas alcancei misericórdia, porque o fiz ignorantemente, na incredulidade. E a graça de nosso Senhor superabundou com a fé e amor que há em Jesus Cristo. Esta é uma palavra fiel, e digna de toda a aceitação, que Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal. Mas por isso alcancei misericórdia, para que em mim, que sou o principal, Jesus Cristo mostrasse toda a sua longanimidade, para exemplo dos que haviam de crer nele para a vida eterna” (1 Tm.1:13-16). Se Deus pôde derrotar um perseguidor voraz de Sua igreja, quem estaria imune à Sua ação redentora?

Semelhantemente, somos todos inimigos vencidos, e agora, exibidos ao mundo como prisioneiros de guerra. Nas palavras do apóstolo, éramos todos “estranhos e inimigos no entendimento” (Cl.1:21), mas fomos derrotados pelo Seu amor. Somos, portanto, uma amostra grátis do que a graça é capaz.

Em outra passagem, Paulo afirma acerca dele e dos demais apóstolos: "Pois tenho para mim que Deus a nós, apóstolos, nos pôs por últimos, como condenados à morte. Somos feitos espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens" (1 Co.4:9). Os cidadãos que assistiam àquele espetáculo cruento sabiam que os últimos a desfilarem eram os condenados à morte. Nas triunfais, Roma colocava os principais presos no fim da fila como que para humilhá-los. Os que vinham antes eram transformados em escravos, mas os que vinham por último eram condenados à morte.

Por mais paradoxal que pareça, somente os "vencidos por Cristo", podem ser considerados "mais que vencedores" por meio d'Ele.

Cristo nos conquista pelo amor! Não é pelo poder, pela força bruta, nem pela imposição, mas por Sua graça e amor. Ele desbarata nossos argumentos, reduz nossa presunção a nada, derraba-nos de nosso pedestal de orgulho para, finalmente, tornar-nos novas criaturas, mortos para o mundo (sistema) e vivos para Deus.

Repare o quão recorrente é este assunto nos escritos paulinos. Em sua segunda carta aos Coríntios, ele declara que devemos levar sempre e “por toda a parte o morrer do Senhor Jesus no nosso corpo, para que a vida de Jesus se manifeste também nossos corpos e assim nós, que vivemos, estamos sempre entregues à morte por amor de Deus, para que a vida de Jesus se manifeste também em nossa carne mortal” (2 Co.4:10-11). Abram alas! Estamos em pleno desfile! O espetáculo não pode parar!

E por onde passamos, exalamos o bom perfume de Deus... Os que, todavia, se mantém cegos, no mínimo perceberão a fragrância que espalhará quando passarmos. Nossa conduta há de sensibilizar até os mais ferrenhos inimigos da fé. “O vosso procedimento entre os gentios seja correto”, admoesta Pedro, “para que, naquilo em que falam mal de vós, como de malfeitores, observando as vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação (...) Pois é a vontade de Deus, que, pela prática do bem, façais emudecer a ignorância dos insensatos” (1 Pe.2:12,15).

Com amor eterno Ele nos amou, com benignidade nos atraiu, capturando-nos com“laços de amor” (Jr. 31:3; Oz.11:4). Suas correntes são tão poderosas, que podemos fazer coro com Paulo: "Pois estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor" (Rm.8:38-39).

A verdadeira "marcha para Jesus" não acontece com data marcada, guiada por trios elétricos, ao som de gritos de guerra, mas acontece todos os dias, pelas ruas, avenidas, corredores de supermercados, shoppings, bancos, onde gente conquistada pelo amor de Jesus são conduzidas como evidência do poder do Evangelho.

Desta marcha eu participo sem o menor recato.

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Do Blog do autor para o Blog do Ed

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